Espuma dos dias — “Derrubando o tecto do paradigma actual”, por Alastair Crooke

Seleção e tradução de Francisco Tavares

7 min de leitura

Derrubando o tecto do paradigma actual

Por Alastair Crooke

Publicado por em 16 de Outubro de 2023 (original aqui)

 

 

Será que Netanyahu, consumido pela ira e pelo pânico, arriscará?

 

Escrevi na semana passada que a raiz do actual conflito dos EUA com a Rússia foi a omissão, no final da 2ª guerra mundial, de um tratado escrito que estabelecesse os limites e a definição dos ‘interesses’ ocidentais, e pari passu, os da Rússia juntamente com os interesses comerciais e de segurança da China no coração asiático.

Tudo ficou vago e não escrito na euforia do pós-Guerra Fria – de modo a dar aos EUA espaço de manobra que levou o tomou sem rodeios. Os EUA manobraram para remilitarizar a Alemanha e levar a NATO sempre em frente para, em direção à região central. Como muitos haviam advertido, essa abordagem dos EUA acabaria por significar guerra.

E efetivamente, frentes de guerra assimétricas foram abertas horizontalmente em muitas esferas com a operação especial da Rússia na Ucrânia. Embora ostensivamente focado em impedir a absorção furtiva da Ucrânia pela NATO, também abriu a frente principal da Rússia – a de conter o avanço da NATO de penetrar ainda mais.

Hoje, todos os olhos estão focados na crescente ‘guerra’ no Médio Oriente. São feitas muitas perguntas, mas a principal é: porquê?’

Aqui, verificamos que as questões são assustadoramente semelhantes. No final da 2ª guerra mundial, o Ocidente queria que seus judeus europeus tivessem uma ‘pátria’, e assim, em 1947, a Palestina foi peremptoriamente dividida entre judeus e árabes.

A narrativa predominante no Ocidente tem sido que as dificuldades e guerras que se seguiram a esse acontecimento – particularmente o confronto de hoje em Israel/Palestina – resultam simplesmente da incapacidade perversa dos Estados árabes de aceitar a existência do Estado de Israel. Muitos no Ocidente vêem isso como irracional, no mínimo – ou como uma falha cultural fundamental, na pior das hipóteses.

Bem, como foi o caso no que diz respeito à situação militar europeia do pós-guerra, nada foi formalmente acordado no que diz respeito aos judeus e árabes que vivem num único lote de terra. Os acordos de Oslo de 1993 foram uma tentativa de algum acordo, mas, mais uma vez, tudo era vago, e a ‘chave’ de segurança fundamental para todo o acordo ficou inteiramente à discrição dos israelitas.

É evidente que se pretendia dar a Israel o máximo de margem de manobra. Mais do que isso, pretendia–se que Israel tivesse a ‘vantagem’ estratégica – não apenas a ‘vantagem’ política, mas os EUA comprometeram-se a garantir que Israel também tivesse a ‘vantagem’ militar sobre os seus vizinhos.

Para ser franco, o objectivo de levar os Estados árabes a aceitar a presença de Israel nunca foi prosseguido, ou então foi compelido por medidas militares e financeiras (Síria, Iraque, Líbano e Irão). Excepto no caso do Egipto, através da devolução do Sinai ao Cairo. A actual iteração da ‘normalização Abraham’ (chegar a um acordo com Israel), no entanto, atira efectivamente os palestinianos para ‘debaixo do autocarro’ em prol da conformidade saudita com a normalização.

Da mesma forma que a NATO pretendia colocar a Ásia sob o domínio dos EUA, também a hegemonia cultural de Israel no Médio Oriente – acreditava–se nos círculos de Washington – colocaria o Médio Oriente também sob o domínio Ocidental.

O que está por detrás da actual manifestação de resistência violenta palestiniana está precisamente enraizado num entendimento inverso ao de Washington.

A ‘realidade’ inversa é que, ao longo da última década, Israel tem vindo a afastar-se cada vez mais das bases sobre as quais qualquer paz regional sustentável poderia ter sido construída. Israel, perversamente, tem andado na direcção oposta – derrubando os pilares pelos quais poderia ter sido possível uma reaproximação regional.

Netanyahu, ao longo da última década, levou o eleitorado israelita muito para a direita, tirando partido do Irão como o fantasma para assustar o público. (nem sempre foi assim: depois da Revolução Iraniana de 1979, Israel aliou-se ao Irão, contra a ‘vizinhança próxima’ árabe).

Netanyahu também propagou ‘a mensagem’ ao seu eleitorado de que, graças ao ‘sucesso’ dos Acordos de Abraham [n.t. acordos bilaterais entre Israel e os Emiratos Árabes Unidos e o Bahrein, de 2020, ver aqui] o mundo não se preocupa ‘nada’ com os palestinianos. Que isso são “notícias desatualizadas”.

Este desempenho distraiu o mundo ocidental de compreender plenamente o que os ministros radicais do governo de Netanyahu têm planeado: Um dos principais compromissos dos colegas do Gabinete de Netanyahu é construir o (terceiro) templo judaico no Monte do Templo, onde se encontra actualmente a Mesquita de al-Aqsa. Em termos claros, isto implica o compromisso de demolir al-Aqsa e construir um templo judaico no seu lugar.

O segundo compromisso fundamental é fundar Israel na bíblica ‘terra de Israel’. Mais uma vez, em termos claros, isso desapropriaria os palestinos na Cisjordânia; como o Ministro da Segurança Nacional, Ben Gvir, deixou claro, eles enfrentariam uma escolha: deixar ou viver sob subserviência num estado supremacista judeu.

O terceiro é instituir a Lei Judaica (Halakha) no lugar da lei secular. Isso privaria os não-judeus em Israel do seu estatuto legal.

Tudo junto – a judaificação de al-Aqsa; a fundação do Estado na bíblica ‘terra de Israel’ e o fim da Lei Básica secular – significa que a Palestina e o povo palestino simplesmente são apagados. Há três semanas, Netanyahu acenou com um mapa de Israel ao fazer o seu discurso na Assembleia Geral da ONU; vejam só: Gaza e os Territórios Palestinianos não aparecem nele. Eles são apagados. A situação é tão existencial como essa.

Estas são os desafios que, em última análise, estão subjacentes à provocação extrema das forças militares do Hamas contra Israel. Pretende-se quebrar o paradigma (não é um grito para algum tipo de regresso ao quadro de Oslo).

No entanto, ao exagerar, Netanyahu e a sua equipa podem ‘derrubar o telhado’ de todo o projecto Ocidental. Biden não parece ver o perigo à espreita dentro da sua própria linguagem exageradamente enfurecida, comparando o Hamas com o ISIS e apoiando uma resposta “rápida e decisiva e esmagadora” de Netanyahu. Biden disse que acredita que Israel não tem apenas o direito, mas um “dever” de retaliar, acrescentando que “os Estados Unidos apoiam Israel.”

Biden pode obter mais do que procura: uma tragédia sob a forma de retaliação total infligida aos palestinianos em Gaza. Netanyahu, preso pela dinâmica do seu próprio medo e vulnerabilidade, faz o papel de Dionísio, o Deus do excesso. E Biden encoraja-o.

Assim como a equipa Biden expôs os Estados Unidos e a NATO à humilhação na Ucrânia, a equipa Biden parece incapaz de imaginar o que pode resultar da humilhação de Israel, através da sua vingança contra Gaza. A Ucrânia trouxe graves corolários financeiros para a Europa. Em Israel, a sua inteligência e estrutura militar implodiram. Imagine se a estrutura política também se tornar disfuncional.

Quando o Ocidente olha para a situação de modo puramente instrumental e estático (ou seja, as Forças de Defesa de Israel são extremamente mais poderosas do que o Hamas e, portanto, o Hamas está destinado a ser destruído – ‘é uma questão de engenharia’) – se ‘você’ tomar esta posição – talvez, você esteja a colocar a questão de forma errada.

A pergunta a fazer é, antes, dinâmica: como é que esta dramaturgia prosseguirá ao longo do tempo? De que forma a suposta guerra de Israel em Gaza poderá progressivamente moldar os cálculos do Hezbollah, da Síria e da esfera muçulmana – e abrir oportunidades políticas que até então não estavam disponíveis.

Podemos ver uma oportunidade a abrir-se diretamente; ouça o que o porta-voz do Pentágono, John Kirby, diz: “por um lado, rumores sugeriram que Biden pretendia assinar um cheque gigante de US $100 mil milhões para lavar as mãos da Ucrânia”, mas agora ele afirma muito claramente que: “você não quer tentar apostar em apoio de longo prazo quando afinal está no fim da corda”. (A Rússia pode agora encerrar rapidamente o episódio da Ucrânia.)

O principal objectivo da dramática tragédia é suscitar o sentimento de admiração para o público que vê no herói trágico, uma imagem de si mesmo. É isto que se está a desenrolar à medida que o mundo islâmico observa Gaza desmoronar-se. O (‘passivo’) grande Aiatolá Seyed al-Sistani fez um apelo para que o “mundo inteiro enfrente esta terrível brutalidade”. A Cisjordânia irá agora entrar em erupção? Será que os palestinianos que vivem dentro da linha verde se revoltarão?

Se as forças israelitas invadirem Gaza, isso poderá facilmente transformar–se em Bakhmut/Artyemovsk – um moedor de carne abrasador.

No entanto, o Hezbollah está a cozinhar lentamente a frente norte, embora com cuidado. Serão os EUA desta vez que reagirão exageradamente (como em 1983, quando o USS New Jersey bombardeou posições drusas no Líbano)? Lembre–se de como isso terminou – com a destruição completa da Embaixada dos EUA e a destruição separada do quartel dos Fuzileiros Navais, matando 241 militares dos EUA. Hoje, o grupo de ataque USS Gerald Ford está ao largo do Líbano, pronto para deter o Hezbollah.

O Hezbollah e a frente de Resistência anunciaram as suas linhas vermelhas. Se as atravessarem, Nasrallah (secretário-geral do Hezbollah) prometeu abrir uma nova frente.

Portanto, devemos tentar ver os acontecimentos de forma dinâmica, e não apenas através da bolha literal das distrações de hoje: se Netanyahu e o Ministro da Defesa Gallant – consumidos pelo desejo de vingar os acontecimentos de sábado – reagirem exageradamente, Israel poderá encontrar-se em perigo existencial.

Israel está rodeado por dezenas de milhares de mísseis inteligentes e enxames de drones. Um ataque ao Hezbollah ou ao Irão constitui a ‘pílula vermelha’ para Israel. Será que Netanyahu, consumido pela raiva e pelo pânico, arriscará? E se ele, Gallant e Gantz sacam a pílula vermelha, será que o telhado pode cair?

 

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O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).

 

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